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Políticas Culturais

Este texto, gerado a partir da palestra de Antanas Mockus, ministrada em Porto Alegre no ano de 2005, foi publicado em 18 de outubro de 2005 pelo GEEMPA ( Grupo de Estudos sobre Educação, Metodologia da Pesquisa e Ação) , e gentilmente cedido para o portal da Aula São Paulo.

A versão integral do texto pode ser encontrada no site do GEEMPA, no endereço: http://www.geempa.org.br.

 

A CIDADE COMO UMA GRANDE ESCOLA
Antanas Mockus*

Parabéns pelos 35 anos do Geempa e muito obrigado por participar desta comemoração. Às vezes, ficamos sem saber como dizer; e a arte pode servir neste momento porque nos indica caminhos a seguir. Desculpem-me por não falar português, o que me causa vergonha, mas espero poder ser entendido por todos vocês. Meu tema é a cidade como oportunidade educativa e o meu propósito é tentar dividir com vocês minha forte convicção de que na cidade há muitas oportunidades educativas, isto é, a cidade pode e deve ser uma grande escola.

Consideremos a cidade relativamente a alguns de seus vetores, a saber, a cidade como lugar onde se aprende normas, a cidade como lugar onde se pode aprender a agir coletivamente, a cidade como lugar onde mudam alguns sonhos, dentre eles o sonho de bem se transportar e, finalmente, a cidade onde se educam emoções, interesses e razões. São estes os cinco vetores que me proponho abordar.

Introduzindo o primeiro. A cidade é muito densa, e nela há muita diversidade, com pessoas e saberes muito diferentes. Por outro lado, estamos na cidade muito perto uns dos outros, o que faz com que as barreiras da distância se encontrem diminuídas, e as relações anônimas e voluntárias se multipliquem. Viver numa cidade é como viver numa biblioteca – há muita gente diferente com a qual podemos nos relacionar.

A cidade se autotransforma em vários aspectos. Um deles é a própria divisão do trabalho, o que faz com que cada vez mais dependamos uns dos outros e façamos, cada um de nós, tarefas diferentes. A cidade – e talvez seja esta minha aposta central – facilita a autoconsciência da cultura ou a sua reflexibilidade e sua transformação deliberada. As sociedades, em setenta anos, – é o meu sonho – estarão transformando muito ativamente sua cultura, não de maneira manipuladora, mas de maneira deliberada e compartilhada. Algo como, por exemplo, poder decidir “como queremos ser?”. Provavelmente seremos escultores de nós mesmos, escultores que fazem auto-escultura, mas que também esculpirão uns aos outros.

Desde a Grécia antiga, a polis era um lugar de estruturação jurídica, onde já existiam os costumes. A lei não escrita era mais difícil de mudar, enquanto a lei escrita era mais fácil de sofrer modificações, o que acontecia com freqüência em algumas cidades. O espaço público é onde é mais simples de serem visualizadas modificações, mas todos os campos são suscetíveis de transformação. Bogotá se transformou, nos últimos anos, de uma maneira muito forte no que se refere a seus comportamentos, a algumas de suas crenças e a algumas de suas justificações, mas também transformou o espaço público.

Já mencionei o transporte e, de maneira mais ampla, a relação com o meio ambiente; todas estas autotransformações ou tentativas de autotransformação podem e costumam deixar um saldo pedagógico. Como conseqüência sempre aprendemos alguma coisa. Inclusive, quando a cidade fracassa ou quando não alcança algum objetivo, a sociedade pode aprender, o que faz que cada uma destas autotransformações utilize algum conhecimento já adquirido.

Bogotá, há 15 anos, era feia; apesar disto, muitos de nós gostávamos dela, mesmo feia. Era a “nossa” Bogotá e decidimos declará-la “coquete”, isto é, uma Bogotá faceira. Todos nós conhecemos pessoas que são feias, mas que sabem no seu comportamento se tornar faceiras, muito atraentes, muito sedutoras. Fazendo uma comparação, se você não pode mudar seu hardware, pode mudar seu software. Isto pode torná-lo mais atrativo ou atrativa. Simplificando, Bogotá primeiro mudou seu comportamento e depois mudou sua infra-estrutura.

Atualmente, Bogotá está não somente faceira, mas bonita, é o que dizem as pessoas na Colômbia. Muitos viajantes que não a visitavam há muitos anos reconhecem-na como bela. Uma concretização destas duas faces da cidade, isto é, seu hardware e seu software , são a infra-estrutura e a cultura. Interligando ambas, podemos falar-lhes de um programa muito específico que se chamou “Obras com saldo pedagógico”.

Cerca de 1.000 jovens de todas as regiões de Bogotá, propostos pelas Juntas de Ação Comunal, foram treinados para, juntamente com a comunidade, projetar uma pequena obra de interesse comunitário – um parque, uma escada de acesso, uma série de banheiros. 30.000 dólares era o orçamento de cada uma destas obras, mas 10 jovens faziam com sua comunidade 10 projetos, e depois os mesmos 10 jovens tinham que escolher somente um dentre os 10 projetos, e este era o que seria realizado.

Chamou-se de “Obras com saldo pedagógico” porque, mais importante do que a obra física de concreto a ser terminada – o que também era importante – era a preparação, a capacitação para elaborar projetos e, ainda, outra aprendizagem mais difícil, era a de como escolher um dentre aqueles vários projetos.

Imaginem quão heróica era a tomada de decisão: 10 jovens, cada um com o seu projeto, sabendo de antemão – pois essa era a regra do jogo – que deveriam escolher somente um. Nove jovens tinham que renunciar aos projetos que haviam elaborado, o que evidenciava seu interesse em simplesmente aprender a elaborá-los.

Nos concursos posteriores de obras na comunidade, esse programa praticamente levou quase a metade dos prêmios. Os jovens que dele participaram, portanto, aprenderam muito. Além disso, eles também levam vantagem num mecanismo de orçamento participativo um pouco parecido com o existente em Porto Alegre, que é famoso mundialmente, mas que não é anual, é concretizado a cada três ou quatro anos como período de um plano de desenvolvimento.

Esses jovens também lucram por conta do conhecimento muito operativo que culmina na efetiva construção das obras, isto porque, para chegar à concretização e finalização da obra, é necessária a construção da capacidade humana.

Outro aspecto de como Bogotá aprendeu a aprender é o tema do medir. Quando as ações são públicas e não temos formas de medi-las, as opiniões se dividem; algumas pessoas dizem “bem, fascinante, parece-me bom, prefeito”, outras dizem “não, está péssimo” e, por detalhes às vezes completamente casuais, por fatos isolados, faz-se um juízo muito irracional. Por isso, aprender a medir resultados, aprender a medir impactos foi difícil, mas muito importante.

Após um mês estando pela primeira vez na prefeitura de Bogotá, perguntei quantos homicídios haviam ocorrido no ano anterior; havia três ou quatro cifras diferentes, porque havia três ou quatro organismos encarregados desta avaliação. Minha primeira instrução foi: vejam qual destas cifras é a mais confiável, reúnam-se, comparem as metodologias, comparem as definições e, a cada mês, publicaremos uma cifra sempre com a mesma metodologia.

Três anos depois, o setor privado propôs uma coisa fascinante: uma avaliação em torno de 180 indicadores. A cada três meses, a prefeitura os entrega, o setor privado os analisa, torna-os mais facilmente legíveis e os publica. A cada ano, faz-se um evento acadêmico sobre estes 180 indicadores, acrescentando-se a eles uma enquete com mais de 200 perguntas a serem respondidas pelos cidadãos.

Com isso, temos um governo que possui uma “ libreta ” de qualificações; é como um caderninho de notas, semelhante aos que são enviados aos pais com considerações sobre os alunos, é como um boletim de notas. Desta maneira, a prefeitura é anualmente julgada externamente. Lembro-me ainda da dor na alma, da nostalgia de perda do poder quando aceitamos esta situação, pois estávamos entregando toda a informação para outros que iriam interpretá-la e publicá-la. Perdemos, portanto, o controle. É óbvio que se a avaliação for boa isto nos traz felicidade, porque, se a auto-avaliação é importante, a avaliação externa traz muito mais segurança para todos os envolvidos.

A Câmara do Comércio, a Fundación Corona e o principal jornal do país, El Tiempo , associaram-se para construir este sistema de indicadores e medi-los. A cada três meses publica-se boa parte das cifras e anualmente é publicado um livro completo. Isto faz com que o debate público seja muito mais qualificado, pois as pessoas não se baseiam em impressões, mas fazem um juízo mais adequado sobre as informações.

Obviamente, isto implica na responsabilidade das entidades ao recebermos os resultados da pesquisa intitulada “Bogotá, como estamos?” No gabinete do prefeito era o dia mais tenso do ano, assim como é numa escola o dia em que são publicadas as notas dos alunos. A administração pública se coloca numa situação pedagógica a partir de um dispositivo de avaliação externa. Se os administradores são avaliados isto ajuda a detectar onde deve ser fortalecida a produtividade e propicia a apresentação de coisas belíssimas. Em Salvador, na Bahia, aprendemos algo acerca de uma melhor atenção aos cidadãos que devem pagar contas e não têm um banco. Esta solução se tornou o tema melhor avaliado nas pesquisas populares.

Tradicionalmente, eram avaliados a recreação, os esportes, a cultura, mas, atualmente, o serviço ao cidadão passou a ocupar o primeiro lugar. O que descobrimos a partir daí? Havia entidades que cobravam tarifas altas inexplicáveis, outras que atendiam mal os cidadãos, outras que eram julgadas corruptas. Este é o castigo do cidadão. Se sou mal atendido aqui, deve haver algo de estranho; se me cobram caro demais, ou não entendo porque as tarifas são desta ordem, vingo-me acreditando ou dizendo que isto é corrupto. Assim aprendemos a medir e a utilizar até certo ponto os resultados destas medições.

Vejamos agora a cidade como lugar onde se aprendem normas. Que tipos de normas existem? Simplificando, vamos dizer que há três tipos de normas e vamos introduzi-las pelo ângulo usual do castigo. Há normas que, se não as cumprirmos, provocam-nos algum tipo de sanção. Há duas mais visíveis: a sanção legal, multa ou prisão, e a auto-sanção moral, que é o sentimento de culpa.

Um filósofo colombiano escreveu, nos anos 70, a seguinte frase: “Se vocês não querem ter uma sociedade cheia de prisões, com muitos presos, aceitem grandes sentimentos de culpa.” Era uma alternativa muito pouco atrativa: ou prisão ou culpa. Isto era simples demais, mas passava uma idéia muito interessante, ou seja, ou você se auto-regula ou regulam você de fora.

A mim não agradava que fossem somente duas alternativas e, com alívio, descobri inicialmente que eram três e, com maior alívio, descobri posteriormente que eram seis. Passo a contar-lhes um pouco destas descobertas.

O primeiro passo foi com antropólogos, sociólogos e psicólogos sociais. Descobri que não existe somente a multa, a prisão, a culpa, mas também existe o temor ao rechaço social, à censura social, ao ostracismo. Alguns estudos dizem que no Ensino Fundamental as meninas utilizam mais este tipo de castigo: “Não falemos com Fulana”. Ou seja, é como interromper a relação social. Tive na faculdade um colega que durante cinco anos não me cumprimentou. Por que? Porque me apaixonei por uma amiga em comum. Não, não era uma namorada, mas ele podia ser um pretendente secreto dela. Ele se apresentava como seu amigo, acreditando que ela era muito frágil e eu era muito forte. Felizmente, cinco anos depois, quando terminou a relação, ficou claro que o frágil era eu e a forte era ela; meu colega, então, voltou a me cumprimentar.

Não existem somente castigos, existem também as normas sociais. Se as pessoas as cumprem, há reconhecimento por parte da sociedade. Mas há também uma forma de aderir às normas sociais que poderíamos chamar de conformismo, o que pode ser discutível, mas existe. Muita gente diz  -   "Aonde vou, adapto-me às normas do lugar". Assim, alguém que, na Europa, nunca cometeria um ato de corrupção, viaja para um país africano ou sul-americano e vê que -   para conseguir algo - todo o mundo paga suborno; acaba, sem muito trabalho, se adaptando a esta nova situação.

“À terra onde fores ter, faze o que vires fazer”, é um ditado clássico. Porém, é muito mais bonita a confiança. Quando agimos bem, as pessoas confiam em nós e, uma vez que confiam em nós, gostamos da confiança. Para não perdê-la ou para aumentá-la comportamo-nos segundo as normas. Uma pessoa pode seguir normas sociais para ganhar, consolidar e manter a confiança. Não rompemos com as normas morais por temor à culpa. Poderíamos romper com elas, mas nosso sentido do dever – o que, na tradição católica, se chama a voz da consciência – nos diz: “Faça, aja de tal maneira. É seu dever atuar de tal modo.”

Pessoalmente, acredito que quando agimos de acordo com nossos princípios, sentimos prazer. Mas tenho dois professores, colegas de filosofia, ex-colegas muito mais qualificados do que eu, que me disseram: “Antanas, tome cuidado, que ser moral pelo prazer de ser moral é quase imoral, é praticamente imoral.” Explico: para eles, a voz da consciência é muito austera, não tem nem um pequeno prazer, não faz como os jovens de hoje, que se dizem “Esta é uma boa”, sem levar em consideração uma voz melancólica, uma voz séria.

Há também a admiração pela lei, já que não seguimos a lei somente pelo temor do castigo, seguimo-la porque o procedimento da formação das leis, ou o procedimento da aplicação das leis, ou o impacto histórico das leis nos comovem, nos animam, nos atraem. Ou seja, podemos seguir a lei porque ela é lógica, porque nos parece boa. Também podemos seguir a lei porque – é nossa consciência que o diz – as leis devem ser seguidas, mesmo se estamos em desacordo com elas do ponto de vista moral; se estamos em desacordo, obedecemos às leis, mas participamos em discussões, em organizações, em eleições, como tentativas de mudar as leis que não são de nosso agrado.

Mas, enquanto isto não acontece, continuamos obedecendo, ou seja, estar em desacordo com uma lei é aceitável numa democracia, mas não é uma justificativa para deixar de obedecê-la. Após estas explicações, pergunto-lhes: a qual cada um de vocês obedece mais? Escolham um dos seis grupos, um por um, qual é o que mais os norteia. Sei que é uma pergunta difícil e que pode haver dois ou três simultâneos, mas convido-os a escolher somente um.

Bem, prontos. Vou passar pelos seis e vocês levantam a mão somente uma vez. De acordo? Quais dos seis grupos de mecanismos influem mais sobre a conduta de vocês, sobre o seu comportamento? Quem se sente sobretudo guiado pela lei, por admiração ou pelo sentido do dever perante a lei? Quem se sente governado sobretudo pelo temor à multa ou à prisão, pelo temor às sanções legais? Quem se sente guiado sobretudo por autogratificação de sua consciência ou pelo sentido do dever por sua própria moral? Quem se sente guiado sobretudo por temor à culpa? Quem se sente guiado sobretudo por reconhecimento social? Quem se sente guiado sobretudo por temor ao rechaço social?

Agora, a que obedecem mais os cidadãos comuns, os brasileiros, as brasileiras, as pessoas com as quais trabalham vocês? O cidadão comum. Quem acredita que o brasileiro médio se guia sobretudo por admiração pela lei, pelo sentido moral de obrigação perante a lei? Quem acredita que o brasileiro médio obedece sobretudo por temor à multa e à prisão? Quem acredita que o brasileiro segue sua consciência e o faz por bem, por gratificação ou por sentido do dever? Quem acredita que o brasileiro médio se guia sobretudo por temor à culpa? Quem acredita que o brasileiro médio obedece sobretudo ao reconhecimento social? Quem acredita que ele obedece sobretudo por temor ao rechaço social?

Podemos agora comparar o que dissemos de nós mesmos e o que dissemos dos outros. Mais de 200 disseram que somos sujeitos morais. 32 disseram que são sujeitos culturais e 8 disseram que são sujeitos principalmente legais. Em primeiro lugar, sujeito moral, em segundo, cultural, em terceiro, sujeito legal.

Dos outros dissemos o contrário – 250 pessoas disseram que os outros são principalmente legais, 27 que são principalmente morais e 10 que os outros são principalmente culturais. Isto significa que eu me guio sobretudo pela minha moral, mas estou em uma sociedade onde os outros se guiam principalmente pela lei.

Estou lidando, aqui, neste momento, com pessoas qualificadas. No Brasil, eu não fiz esta sondagem em setores populares, mas na Colômbia eu a fiz. Inclusive em prisões e a resposta era: “Eu sou um sujeito moral, mas os outros são fundamentalmente legais.” Mas, a comparação se torna ainda mais interessante se verificarmos um outro aspecto. Mais de 230 pessoas disseram que obedeciam por bem e somente 4 disseram que obedeciam fundamentalmente devido aos castigos. Este resultado se inverte quando respondemos o que pensamos acerca dos outros. 23 disseram que os outros obedeciam por bem e 250 disseram que os outros obedeciam por medo aos castigos.

Ao que parece, muitos daqui se dizem: “eu sou um sujeito moral e você é um sujeito legal”. Esta leitura é muito assimétrica e Kant arrancaria os cabelos e diria “cada um destes membros da comunidade humana se acha maior de idade, mas vê os outros menores de idade.” É gente que obedece à lei, não por consciência, mas por medo ao castigo.

Bom, o importante não é somente a assimetria que acabamos de olhar. O importante é que há três sistemas reguladores. Quando começam os problemas? No momento em que a cultura nos diz que é aceitável um comportamento que a lei nos diz que não é aceitável. Ou vice-versa, a lei diz “não roube o serviço de água”, “não puxe canos clandestinos do aqueduto”, mas moramos em um bairro onde estes mecanismos premiam quem rouba a água e castigam quem não aceita roubar a água. Deste modo, a validação cultural da ilegalidade e a carência da valoração cultural da legalidade tornam-se o núcleo do problema de segurança de nossas cidades.

Vejam que usei pela primeira vez a palavra segurança. Quando eu era prefeito, diziam-me: “Prefeito, o senhor não tem enfoque de segurança.” Eu retrucava: “Não preciso falar de segurança para trabalhar os problemas fundamentais de segurança.”

Simplificando, como vejo a segurança. Quando acontecem fatos visíveis de insegurança, quase todo o mundo reage, coerentemente com o que já vimos antes. Quem causa a insegurança? Gente que não é parecida conosco. Coloquemos, aqui, sinais de interrogação – por que pensamos que os criminosos são tão diferentes de nós? Como não os vemos semelhantes a nós, concluímos que o que deve ser feito são mais prisões, mais multas, mais anos de prisão, melhores juizes, mais eficácia na justiça.

Essas medidas são como a tecla de um piano. Ela serve e é necessário fortalecê-la. Como prefeito eu a fortaleci, treinei policiais e policiais judiciais, isto é, investigadores a serviço dos juizes para arregimentar provas e melhorar a qualidade dos juízos. Mas é incompreensível que meia humanidade trabalhe os temas de segurança somente pensando em mecanismo de repressão e esquecendo que há outros mecanismos simultâneos.

Não acredito que se alguém perguntar aos que estão aqui porque não cometeram um homicídio, a resposta fosse: “é que, para homicídios, no Brasil são 30 ou 40 anos de prisão”. Será que alguém responderia: “se reduzirem a pena por homicídio a um terço, eu mataria.”? Por que, nós que estamos aqui, não matamos? Possivelmente, porque a culpa seria insuportável, ou porque nossa consciência nos ordena respeitar a vida, ou porque temos normas sociais compartilhadas que nos dizem “um educador não mata”, ou “um cidadão da minha família não mata” etc. Há, portanto, uma série de mecanismos adicionais ao temor do castigo. Este temor é apenas uma das seis possibilidades.

O desafio é harmonizar as três razões de conduta. Harmonizar não significa identificar; é como na música, há temas que a lei trata, que a cultura trata, que a moral trata e que a moral dos indivíduos trata, mas há outros temas em que a lei cala. Por exemplo, a escolha do credo religioso será ditada por sua consciência. Se a terceira razão pressionar demais você a seguir um credo, uma religião, você pode recorrer à lei para que ela o proteja.

Podemos mudar um pouco a linguagem, denominando a primeira razão de regras formais, as normas legais, e denominando as outras duas de regras informais. Desta maneira, entramos na obra de um economista chamado Douglas Nor que diz que países onde estas regras não estão coordenadas são países que se desenvolvem lentamente. Por que? Porque os acordos são fáceis de fazer se as regras estão coordenadas; mas, se a cultura contradiz a lei, celebrar acordos e regras se torna mais difícil.

Tomemos como exemplo um contrato de arrendamento que diz uma coisa, mas verbalmente nós fazemos outra. No contrato consta que basta um mês de pré-aviso, mas verbalmente eu digo “fique tranqüilo, eu lhe dou um pré-aviso de seis meses antes de me retirar”. Da mesma maneira, contratos de trabalho provocam mais conflitos quando as regras não estão bem definidas.

Bem, a cidade educadora é uma cidade que pode optar por uma posição metodológica. Eu optei no meu primeiro governo muito claramente, quando me desliguei do tema legal e disse “temos que nos acostumar a atravessar as ruas pela faixa de pedestre, pela faixa de segurança.” Esta era uma situação típica de um país como a Colômbia, ou de uma cidade como Bogotá em 1995. É uma coisa tão elementar que as normas informais prolonguem e completem as normas legais, ao invés de traí-las. Se a lei diz “não matarás”, que a cultura também diga “não matarás”. Se a lei diz “não roubarás”, que a cultura e as normas informais também digam “não matarás”, desenvolvendo-se aí os mecanismos psicológicos individuais e os mecanismos de controle social.

Como isto pode se tornar concreto na prática? A primeira coisa que fizemos, desde os primeiros momentos de nosso primeiro governo, foi visualizar o controle social. O controle social existia, eu não o inventei, mas nós o fizemos visível. Repartimos aos motoristas de carros 350.000 cartões com duas faces – uma significava “positivo” e a outra, “negativo”. Se alguém cometia uma infração, se alguém obstaculizava a passagem e bloqueava o cruzamento, os outros lhe apresentavam o cartão que “retirava” sua carteira de motorista e lhe faziam sentir uma pequena vergonha pontual. Nunca dissemos “esse é um péssimo cidadão, um anticidadão”, não o declaramos traidor da cidade, mas, inegavelmente, havia uma reação cidadã dizendo, como no futebol “tiro-lhe a carteira de motorista porque acaba de ter um comportamento contra a cidade”.

Simultaneamente, usamos “menos”. Este é um sinal muito agressivo. No circo romano significava pena de morte. No futebol, o cartão vermelho corresponde à expulsão. Um outro recurso foram os monges do silêncio. Eram cidadãos, atores, vestidos de monges, com um cartaz que dizia “o fim do barulho está próximo.” Usamos também mímicos ao invés de policiais de trânsito. Durante um mês, em ruas centrais havia mímicos dirigindo o trânsito, pedindo aos motoristas que seguissem as leis. Eram cidadãos assobiando, ou seja, com uma espécie de autoridade, mas que não impunha multas. Era uma concretização da admiração pela lei, da obrigação moral de seguir a lei, a lei por bem, não pela ameaça com o castigo.

Esta definição formal de cultura cidadã do primeiro programa de governo mostra que pertinência e regras se relacionam entre si: convivência, pertinência e regras vão juntas. Pertencer a uma sociedade, a uma cidade, é aceitar algumas regras. A regra não é somente o que nos impede, mas é o que nos habilita, o que nos faculta. Estas coisas podem ser medidas? No final do segundo governo tínhamos aprendido a medir algumas coisas.

Por exemplo, vejamos um levantamento sobre uma situação corriqueira nos parques. Foi proposta a seguinte pergunta: “Você viu um vizinho deixar os excrementos de seu cachorro num espaço público?” Isto é, alguém vai a um parque com seu cachorrinho e deixa lá o que o animalzinho deposita. 48% das pessoas disseram “sim, eu vi”. A esses foi perguntado “o que você fez?” 71% disseram: “eu não fiz nada”. Horrível! Mas, 29% disseram “sim, eu fiz alguma coisa”. O que fizeram? 1% procurou a autoridade, 3% insultou e agrediu verbalmente, 0% agrediu fisicamente; felizmente, porque não se trata de brigar assim por estas coisas. E 25%, isto é, o restante corrigiu cordialmente o transgressor.

Vi uma transgressão, corrigi verbal e amavelmente; em 2/3 dos casos o transgressor levou a mal e em 1/3 dos casos o transgressor levou numa boa. Qual é o ideal? O ideal é que eu corrija amavelmente e você se deixe corrigir amavelmente. Se vocês comparam o controle social amável, embora em parte mal recebido, com o apelo às autoridades, vocês verão que, em coisas pequenas, é muito mais adequado o controle social do que a autoridade.

Nisto, temos muitas semelhanças com as aulas: muitos dos pequenos conflitos entre os estudantes se resolvem entre eles, não vão parar nas mãos dos professores. Os professores se dão conta de que houve algo em algum lugar da aula, mas já se solucionou sem necessitarem de sua intervenção.

Na cidade é parecido, devemos ter aí uma mútua educação horizontal entre os cidadãos. Um dia, eu estava dirigindo meu carro e esqueci de colocar o cinto de segurança. Numa esquina, um taxista me fez um sinal de desaprovação. Preocupei-me porque pensei que ele estava avaliando toda a minha gestão. Ele viu minha cara de preocupado e mostrou-me o cinto. Aí percebi que estava sem o cinto de segurança. Pus a mão no rosto em sinal de vergonha, coloquei o cinto rapidamente e voltei a olhar o taxista com um pouco de temor, e ele estava sorridente.

Este é um pequeno ciclo completo de controle social, ou seja, se você sair de uma norma, um outro vê e lhe manda um sinal, você recebe o sinal e o interpreta, ajusta seu comportamento e logo recebe um sinal do outro de que as coisas estão bem. Neste momento, se restaurou o funcionamento da regra. Assim que um elemento essencial da cidade educadora é aceitar que outros nos corrijam e aceitar esta correção, desde que seja de maneira amável.

Vejamos outros avanços que foram medidos. Trata-se, agora, de um capítulo um pouco diferente, pois não aborda comportamento, mas justificativas para comportamento. Foi perguntado às pessoas: “Quando há razões para violar a lei? Por exemplo, justifica-se violar a lei para salvar a vida?” A maioria das pessoas responde que sim, para salvar a vida, ou quando é algo muito importante para a família, justifica-se violar a lei. Aqui escolhemos os que diferenciam fundamentalmente os jovens entre si e os adultos também.

A porcentagem de cidadãos para os quais se justifica desobedecer à lei quando é a única forma de conseguir seus objetivos baixou de 24% em 2001 para 17% em 2003. A porcentagem dos que responderam que se justifica violar a lei quando há um grande proveito econômico baixou de 12% para 7,5%. A porcentagem de cidadãos a favor do porte de armas para defender a vida baixou de 25% para 10,5%. Esta é a redução mais notável de todas, pois está muito relacionada com o referendo que vai acontecer aqui no Brasil e que poderá se tornar um marco mundial, uma conquista.

Aqui temos a cifra de mortos no trânsito. Chegamos a ter 25 mortes por 100.000 habitantes por ano, e elas foram reduzidas a 8,5 em 2003. O que foi feito? Além do já mencionado, houve uma restrição à ingestão de álcool. Durante 5 anos e meio foi permitida a venda de bebidas alcoólicas até 1h da madrugada. Isto foi chamado de Lei Zanahoria (cenoura).

Zanahorio quer dizer em espanhol da Colômbia, saudável, que não bebe ou bebe pouco, que não é aloucado. Com isto, a Lei Zanahoria encurtou o horário da venda de bebidas. Estamos vivendo, hoje, quase três anos de “Lei otimista”. Como é esta lei? Das três horas que cortamos antes, devolvemos duas, com condições. “Senhores cidadãos! Se houver mais acidentes ou se houver mais mortes por homicídio nestas horas da noite, retornaremos a encurtar o período para a venda de bebidas. Beba, mas seja mais responsável, cuide-se mais!”

Trocamos a polícia de trânsito, que era local e corrupta, e a dissolvemos. Melhoramos a atenção pré-hospitalar. Em 2003, e isto se estendeu agora para toda a Colômbia, pintamos uma cruz, uma estrela em forma de cruz no chão da cidade, nos locais onde tinha havido acidentes com mortes de pedestres. Esta é uma campanha muito dura. 1.500 pedestres mortos ao longo de cinco anos. É inaceitável!

A redução da taxa de homicídios de Bogotá é o maior orgulho de minha vida e dela participei em seis de seus 10 anos. Ainda não chegamos ao que era Bogotá nos anos 60 ou 70. Muitas das grandes cidades brasileiras estão acima deste pico, ou seja, têm taxas de 90 a 120 por 100.000 habitantes. A América Latina tem cerca de 20, um pouco por conflito armado, mas 90% pelo narcotráfico. Ou seja, o narcotráfico tem sistemas de justiça privada muito agressivos e, por isso, os fiscais e os juizes se assustam, se enfraquecem quando são subornados, quando são ameaçados e não só deixam de julgar os narcotraficantes, como deixam de julgar outros casos. Assim, toda a justiça entra em colapso.

É um convite para que sejamos pedagogicamente muito claros e muito firmes sobre o tema narcotráfico. Reconheço que, na Colômbia, nos anos 70, fomos muito relapsos, parecíamos até simpáticos. Havia professores que nos diziam “é a multinacional colombiana” e não imaginávamos, naquele momento, os pesadelos que nos causaria e todo o dano que provoca à sociedade colombiana e a si mesma.

O que chamamos de capacidade de agir coletivamente? Há muitos bens que são coletivos, como, por exemplo, ter o ar puro. E, para que o ar de uma cidade seja puro, é necessário que muitos cidadãos colaborem – o dono de fábricas, o dono de carro, o dono de veículo de transporte público. Muita gente tem que colocar o seu grãozinho de areia para que o ar seja puro. Qual é a posição mais confortável? É a de que todos os outros cuidem do ar, enquanto eu faço com o ar aquilo que tenho vontade.

O tema da ação coletiva pode ser analisado a partir do número de pessoas que colaboram. Se são poucos, os custos de colaborar vão ser tangíveis e visíveis, pelo menos para eles, mas o benefício vai ser mínimo. Se 5% da população de uma cidade deixa de jogar lixo na rua, isto nem se nota. Por isso, muitas das ações coletivas não conseguem nem começar. Além disso, as pessoas raciocinam da seguinte maneira: “Para que vou ser dos primeiros a me sacrificar? Quando todos já estiverem obedecendo às normas, quando todos já tiverem deixado de jogar papéis na rua, neste momento eu me junto, mas por último.”

O desarmamento é parecido. Muita gente diz: “Eu me desarmo, mas, primeiro, desarmem-se vocês. Se vocês entregarem todas as armas, eu também o farei, mas deixem-me por último.” Se todas as pessoas raciocinarem assim poderá acontecer que não haja desarmamento, pois todos ficam esperando que os outros o façam. Uma vez que uma determinada quantidade de pessoas passa a cooperar pode-se produzir neve – já se vê que o benefício será alto, já se vê que a ação dará resultado, e aí as pessoas se somam.

Bogotá passou por vários processos de ação coletiva nestes últimos anos. Vou apresentar-lhes alguns. Houve crimes terríveis, atrozes, de taxistas contra cidadãos e de cidadãos contra taxistas. O resultado foi um prejuízo mútuo muito grande. Quando alguém entrava em um táxi, olhava para o motorista e pensava “este pode ser um assassino”, e o taxista olhava para o passageiro e pensava “este pode ser um assassino”; havia uma polarização muito grande. O que fizemos? Pedimos a funcionários que, quando pegassem um táxi, avaliassem três aspectos: se o taxista cumprimentava ou não, se o taxista o levava sem discutir aonde você queria ir, e se o taxista lhe devolvia o troco corretamente.

Com isto, fizemos uma lista de, chamemos assim, bons taxistas. Em quinze dias tínhamos relacionado cerca de 150, e os convidamos para uma reunião memorável. Eu me sentia um anão moral perto deles, que me pareciam uns gigantes morais. O que lhes dissemos? “Senhores, se vocês aceitarem, se vocês quiserem, os declaramos “cavalheiros da zebra”. Levem 11 adesivos cada um, com os dizeres “eu sou um cavalheiro da zebra”, eu respeito as normas tal e tal.”

Na Colômbia, chamamos de “zebra” a passagem de pedestres, o cruzamento de pedestres, pois a zebra é um animal listrado, branco e preto. Cada um destes taxistas que levou onze selinhos, colocou um no seu carro, e os outros dez foram entregues a colegas que eram por eles considerados corretos. Em três semanas, tínhamos 1.500 “cavalheiros da zebra”. Em seguida, fizemos capacitações com eles, convidamos outros taxistas com suas famílias ao estádio, fizemos grandes atividades educativas. Ao final deste governo, havia 25.000 “cavalheiros da zebra”. E as pessoas, tomando um táxi e vendo o adesivo de “cavalheiro da zebra”, sentiam-se muito mais seguras.

A primeira reunião foi, inclusive, muito importante para mim. Meu próprio imaginário estava invadido pelos criminosos que tinham cometido crimes em táxis. De modo que, para mim, ver estes taxistas zanahorios , corretos, sãos, mudou meu imaginário. Se havia sido tão fácil encontrar 150 de início, deveriam existir 10.000, 15.000 ou 20.000 assim em Bogotá.

Vi que a pedagogia, em muitos casos, consiste em tornar visível. Claramente, em meio a uma crise, por visibilidade extrema do mal, o que fizemos foi visibilizar o bem e construir uma metodologia para que este bem crescesse.

Outro exemplo. Tivemos uma crise de abastecimento de água porque uma adutora se rompeu. O tradicional era a prefeitura cortar a água a cada 24 horas ou a cada 48 horas, dar um pouquinho de água e em seguida tirá-la. Qual foi nossa posição? Era mais lógico ter água no cano e simplesmente se auto-regular a fim de consumir menos água.

No início foi muito difícil, mas, no final, oferecidos também incentivos econômicos, as pessoas passaram a consumir menos e o consumo passou de 27m³ para 17m³ por família. A primeira semana foi terrível porque o consumo aumentou, mas, felizmente, conseguimos conter nossa impaciência, analisamos e estudamos porque estavam consumindo mais e concluímos que estavam consumindo mais porque até em nossas casas não acreditavam em nós.

A maioria da população acreditava que isto era um preâmbulo ao corte total, ou seja, as pessoas não imaginavam que nossa posição era séria, que não iríamos cortar a água e que era necessário economizá-la. Hoje, em cada casa, sobretudo meninos e meninas que fazem parte deste sistema educativo orientaram as pessoas para um menor uso da água. Certa vez, fui repreendido por minha esposa porque estava desperdiçando a água – eu estava durante 30 minutos pensando no problema da água, mas debaixo dela.

Um outro programa foi o tributário. Para mim, é muito bom e honroso contar esta história em Porto Alegre, porque aqui aprendi que as pessoas podiam ser responsáveis, podiam ser de uma esquerda relativamente responsável, ou seja, se queríamos mais programas sociais era fundamental conseguir mais impostos. Em algum momento, isto se chamou aqui de justiça tributária. Na Colômbia reinava a demagogia total, isto é, o governo devia oferecer mais programas sociais, mas ao mesmo tempo devia cobrar menos impostos. Parecia facílimo. As campanhas eleitorais eram delirantes – prometiam, prometiam, prometiam programas sociais e, além disso, prometiam que não iriam cobrar mais impostos. É claro que isto era uma fraude.

Ganhei as eleições por duas vezes, anunciando mais impostos. Na segunda vez, o Conselho da Cidade (Câmara dos Vereadores) disse: “O senhor ganhou as eleições prometendo mais impostos. Nós, do Conselho, as ganhamos prometendo menos impostos.” O que fizemos? No formulário de impostos, colocamos uma linha extra, convidando os cidadãos a pagar impostos voluntários; por exemplo, 10% a mais, se o quisessem. 63.000 cidadãos pagaram 110%, isto é, 10% a mais. Depois disto, o Conselho aceitou que se fizesse uma correção dos tributos.

Continuemos nossa análise sobre a cidade como um espaço educador. Para uma sociedade, uma das coisas mais difíceis de aprender é conseguir a colaboração de milhares e milhares para produzir um resultado que só se concretiza se colaborarem milhares e milhares. Por exemplo, aprender a economizar água não consistia em pensar no hoje, mas no fato de que, do meu comportamento de hoje, depende de, em dois ou três meses, haver ou não uma tremenda escassez de água. Não é uma resposta ao fato de o prefeito ter tirado a água. Não era porque não podíamos gastá-la, mas porque participávamos de uma decisão racional, pensando no futuro de maneira racional, ampliando a confiança.

A maioria de nós, habitantes de Bogotá, há quinze anos éramos muito desconfiados. Éramos corretos, mas desconfiados. E o que acontece com um desconfiado na interação? Começa por dizer: “Este aqui vai me enganar.” E, muitas vezes, como não tenho outra saída – ele vai me enganar – o que eu faço? Eu o engano primeiro. “ Preventive deception ”, como se diz em inglês. Confiar em que os outros possam ter bom comportamento foi extremamente importante. Medir e contar os resultados para as pessoas é como um processo pedagógico, ou seja, as pessoas precisam saber para onde vão, precisam ter alguns sinais, que não são nunca completamente satisfatórios, mas que devem sinalizar que vamos por um bom caminho.

Isso ajuda, mas é preciso, é claro, usar a imaginação. Em relação à água, procedíamos assim. Escolhíamos uma garrafinha de 500ml e juntávamos 2.000 garrafas iguais, as colocávamos sobre uma mesa e dizíamos para as pessoas: “Esse é o consumo médio diário, por casa. Por favor, consumam 20% menos.” E eu ia fazer visitas domiciliares, diariamente, em cinco famílias. Uma destas famílias deixou totalmente de consumir água e eu penso que eles traziam água da casa de algum parente. Eu lhes dizia: “Não é para não consumir. Consumam 80% do que vocês sempre consomem.”

Esta questão da água foi muito interessante, porque mostrou que há uma quantidade de hábitos muito difíceis de mudar. Como já lhes disse, eu mesmo me esquecia freqüentemente de fechar a torneira, ou seja, a gente tem uma série de costumes com os quais se age automaticamente. Foram muito úteis meninos e meninas que, a partir do sistema educativo, se animaram a dizer: “Na minha família, eu ajudo a economizar a água. Eu lembro meu pai e minha mãe, que esquecem”.

O programa “110% com Bogotá” prosseguiu, mesmo após a promulgação de leis aumentando os impostos. 46.000 pessoas são muito notáveis, porque elas continuavam pagando 110% de imposto mesmo quando já haviam sido aumentadas também as tarifas prediais, ou seja, tínhamos usado muitos mecanismos para aumentar a arrecadação.

As pessoas que pagavam voluntariamente podiam escolher a destinação dos recursos, o que é algo novo a partir da pedagogia da cidadania em relação ao governo. Os seis projetos que tiveram mais aporte nesta escolha foram: “maiores de sessenta anos”, “Populações de alto risco”, “Empregos para jovens que vivem na rua”, “Centros educativos em bairros muito pobres”, “Educação para crianças especiais” e “Complemento alimentar”, basicamente tudo relativamente ao sistema educativo.

Eis a curva de empregos em Bogotá. Em 1990, arrecadamos US$ 200mi. Em 2003, chegamos a US$ 750mi. Em 2004, a US$ 800mi.

Falemos um pouco sobre a cidade educadora no terreno do transporte. Bogotá discutiu durante 40 anos se construía um metrô ou não, e as pessoas ficavam bravas e diziam: “Esses bogotanos não sabem pôr-se de acordo.” Da mesma forma, abriu-se uma discussão acerca do número ideal de automóveis.

Era aceito o modelo consumista no qual o padrão ideal de transporte é cada cidadão ter seu carro próprio. Qualquer ambientalista ou qualquer engenheiro – ou até mesmo qualquer um de nós – facilmente faz as contas acerca do número de vias necessárias para que todos nós possamos andar de carro. Ou seja, um carro não é um sistema de transporte universalizável. É possível, sim, universalizar o ônibus, o sistema de transporte coletivo, pois todo mundo poderia ser transportado por ônibus, mas nem todos os cidadãos poderiam ser transportados por automóvel. Seria necessário derrubar e refazer grande parte da cidade.

Há 27 anos, Bogotá tem uma ciclovia. Aos domingos, 1.500.000 pessoas saem para andar de bicicleta, pois sabem andar de bicicleta e têm, na sua imensa maioria, uma bicicleta. Há um problema cultural delicado, que é o problema do suor. “Não posso ir trabalhar suado”, é o que muitas pessoas dizem. Se houvesse uma crise do petróleo, nós, os bogotanos, usaríamos a bicicleta, o que resolveria o problema de transporte de ¼ dos cidadãos. O que fez a cidade? Fez investimentos e fez ações educativas muito contundentes, além de outras, mistas, de regulação e de educação.

“Pico e placa” se chama o sistema de uso dos veículos por turno. Durante três horas pela manhã e três horas pela tarde, nas horas de pico, 40% dos veículos, de acordo com o número de suas placas, não podem trafegar. Isto significa que em dois dos cinco dias úteis da semana, nas horas de pico, você não pode usar seu veículo, não havendo restrições no restante do tempo.

Do ponto de vista da engenharia de tráfego o uso das vias apresentava-se como um camelo, com duas corcovas. Agora, a curva começa mais cedo, é cortada após, torna a subir nas horas intermediárias, desce no outro pico e sobe um pouco mais além do pico. Isto é, as mesmas vias são mais racionalmente compartilhadas por um número grande de veículos. Como conseqüência secundária, este sistema tende a estimular uma redução no uso do carro, estimulando o cidadão a usar o transporte coletivo.

Há outra coisa genial idealizada e executada por Enrique Peñaloza, que foi meu antecessor e posteriormente sucessor na prefeitura de Bogotá. Ele conseguiu que, democraticamente em referendo, fosse aprovado o “Dia sem carro”, que é o maior dia sem carro, do mundo. Em todo o perímetro urbano de Bogotá, na primeira 5 ª feira de fevereiro de cada ano é proibida a circulação de carros particulares; as pessoas saem de bicicleta, de táxi, de ônibus, mas não podem utilizar seus carros particulares. Esse dia sem carros particulares é um exercício pedagógico maiúsculo, pois envolve todos os cidadãos numa operação pedagógica.

Depois de se ter conseguido realizar este Dia, colocou-se em funcionamento o sistema de transporte maciço, com ônibus com portas largas e circulando em vias exclusivas para eles. Com isso, melhorou muito a previsão e a concretização dos tempos para os diversos trajetos.

Temos também a primeira fase do “Transmilênio”, que são rotas alimentadoras a partir do centro de Bogotá e que vão aos bairros populares, fazendo o transbordo para ônibus convencionais, sem aumento do custo da passagem. Numa segunda fase do projeto já temos cerca de ¼ das viagens dentro de Bogotá sendo realizadas pelo “Transmilênio” que emprega ônibus com a capacidade de 150 passageiros cada um.

Já mencionei a ciclovia que atualmente tem 120 quilômetros. No início, eram circuitos isolados, atualmente estão integrados, ou seja, pode-se ir de um extremo a outro de Bogotá por essas vias. São consideradas ciclovias luxuosas que mostram de algum modo o absurdo do uso de um meio de transporte congestionado quando se poderia ter um outro meio muito ágil.

A utilização das bicicletas que tinha atingido o piso de 1% do total de viagens em Bogotá, aumentou para 4% e são predominantemente masculinas durante os dias de semana. Aos domingos, a utilização das ciclovias é equilibrada entre homens e mulheres.

Resumindo o que falei anteriormente. Na Bogotá dos anos 70 o sonho de qualquer pessoa, em todos os extratos sociais, era locomover-se por meio de um carro particular. Agora, este sonho está problematizado, e parte das pessoas que compra um carro sente uma certa culpa, pois sente que está utilizando um espaço público, que é escasso.

Estamos conscientes de que esta maneira que adotamos para resolver o problema não é generalizável, não é universal. De nossa parte, sabemos que, se algum dia tivermos que pagar um imposto elevado para utilizar as vias públicas, entenderemos, porque há uma pedagogia muito forte em relação a uma das dimensões mais importantes da cidade, que é o transporte.

Vou terminar com o que chamei de “As cidades educam emoções, interesses, razões”. Se eu perguntasse a vocês “O que os governa mais – emoções, interesses ou razões?”, qual seria a resposta? Estou vendo, de acordo com as respostas, que a maioria se sente governada por razões, depois por emoções e, por fim, por interesses.

E agora, o que pensamos dos outros? As pessoas com as quais trabalhamos, governam-se por emoções, interesses ou razões? Estou vendo, pela manifestação de vocês, que a maioria pensa que nós somos racionais, mas estamos em uma sociedade de interesseiros. Os outros são tremendamente interesseiros e muito ligeiramente tocados por razões ou emoções. Podemos imaginar quais seriam as respostas de outras pessoas falando sobre este assunto e se isto não nos levaria a uma simetria do olhar em relação aos outros.

Feita esta introdução, o que pode fazer a arte? Nesse jogo de interesses, a arte é absolutamente chave. Ela entra neste cenário e diz: “Não sou interesseira” e a partir daí pára com os interesses, os freia. E logo diz: “De emoções eu sei”. Pois a boa arte costuma produzir emoções, mas as produz de uma maneira muito diferente da que é produzida em outros campos.

Na vida comum, a emoção é muito importante para motivar a pessoa a agir. Se a pessoa tem medo, ou o enfrenta ou sai correndo. Se tem ódio, tenta machucar ou destruir. Se tem admiração ou amor, tenta imitar, no primeiro caso, ou se manter perto do outro, ficar feliz com seus avanços, suas conquistas, no segundo caso. Ou seja, a emoção está conectada.

A etimologia da emoção é disparar, é algo que faz produzir, que leva ao movimento. Assim que a arte é muito estranha, ela faz sentir emoção, mas diz: “Calma, fica aí, não sai daí. Fica sentado na cadeira.” Lembro “Os filhos do paraíso”, filme iraquiano onde duas crianças revezavam um par de sapatos para poderem ir à escola. Quem assiste a este filme se enche de emoções, mas no seu final ele não diz: “Doe 20 dólares para a ONG tal”, nem “Afilie-se ao partido tal”, ou “Saia na manifestação no próximo domingo”. Não! O artista deixa você em liberdade, depois de fazer você sentir e lhe diz: “Tchau! Vá você ver o que vai fazer com a emoção!” Isto é, é seu o problema de decidir o que fazer com a emoção.

A arte tem este lugar privilegiado de fazer você sentir emoções muito intensas, desconectando-as da ação. Ela deixa a emoção trabalhando em você, ou seja, a emoção não é sentida como processo conceitual, ainda que às vezes haja um pouco disto também. Ou seja, emoção e reação nem sempre se chocam, mas freqüentemente a emoção sublinha e marca, e você depois torna a pensar no que lhe produziu a emoção e repensa. Estas duas crianças com o mesmo par de sapatos, a obrigação absurda deste sistema escolar, a de lhes exigir o uso de sapatos, são uma série de questionamentos que a pessoa provavelmente não se fez enquanto estava assistindo ao filme.O que a arte tem a ver com a cidadania? Muito, pois a cidadania implica em desinteresse. Com alguma ironia, ao analisar os direitos humanos, Marx escrevia: “Como é esse desdobramento tão estranho entre o burguês e o cidadão? O burguês trabalha pelo seu interesse todo o tempo, pois seu interesse é fazer dinheiro. Mas, como é que agora, via democracia, via direitos humanos, esse mesmo cidadão que procura fazer dinheiro é capaz de falar do bem geral, é capaz de pensar o que pode ser melhor para os outros, é capaz de votar favoravelmente aos impostos que ele mesmo vai ter que pagar? Como pode a pessoa agir contra seu próprio pequeno interesse, em favor de um interesse maior de mais longo prazo, ou por emoções ou por razões?”

Em parte por isso, as cidades têm uma infra-estrutura artística, porque a cidade dá espaço para a emoção e a emoção produz desinteresse, sendo o desinteresse peça chave para que, em alguns momentos pelo menos, as razões se imponham sobre os interesses. O que faz a arte? Ela rompe com a familiaridade que faz a vida tender a perder cor. Tudo, o trabalho, o casamento, o que a pessoa faz, seus próprios sucessos, tudo isso tende a se tornar cinza. Há uma espécie de invisibilidade. Muitas vezes nas famílias acontece de as pessoas dizerem: “Olhe, você já não me enxerga, volta do trabalho e não me cumprimenta...” ou “você me cumprimenta de uma maneira tão rotineira...”

Minha esposa costuma contar uma história entre marido e mulher que diz o seguinte. Dois amigos se encontram e um pergunta ao outro: “Sua mulher faz amor com você, por amor ou por interesse?” O outro responde: “Acho que é por amor, porque grande interesse não demonstra.”

Obviamente, esta anedota joga com os dois sentidos de interesse. A primeira contribuição da arte é refrescar, tornar familiar o que é familiar. A propósito, o melhor exemplo que conheço é um texto de Tolstoi. Ele introduzia um cavalo falando de propriedade privada no seu livro “Guerra e Paz”. O cavalo dizia: “Que estranha é a relação de propriedade! Meu dono, todos os dias, me cumprimenta, me utiliza, cavalga sobre mim, me chama pelo meu nome, me dá banho, me cuida, me deixa de noite com comida etc. Mas eu conheço outros cavalos que nunca, em sua vida, viram seu dono.” E assim, em três frases, a relação de propriedade que parecia tão óbvia – as coisas e os animais têm dono – rompeu-se, passou a ser vista naquilo que tem de estranho. Há muitas coisas que parecem naturais, mas que não o são.

Há cinqüenta anos, a gente casava, saia para trabalhar, voltava para casa, sentava, colocava as mãos sobre a mesa e acontecia um milagre – chegava um prato servido. Agora, não! Se você não fizer um acordo com sua esposa, ela pode sentar na outra extremidade da mesa e esperar também o milagre, ou dizer: “Antanas, o que será que tem na geladeira?” ou “Eu conheço um bom restaurante aqui perto.” Assim que a arte ajuda a mostrar a arbitrariedade das convenções sociais, da vestimenta, da roupa, da auto-apresentação. A arte nos permite ver a cultura, com distância. Ela também tem outra função importantíssima que é a de criar público, de convidar a tomar distância, de convidar a julgar.

Quando utilizamos os mímicos no controle do tráfego de Bogotá, um mímico era diferente de um policial. Se um policial me diz “vá até a esquina, atravesse e retorne, em vez de atravessar aqui, reto”, o policial me incomoda, me perturba, me faz perder tempo. Mas, se é uma expressão de arte, a partir de uma posição desinteressada, o mímico está me convidando a fazer parte de um processo desinteressado. Por que tenho de ir até a esquina? Por amor à arte. Temos uma expressão – não sei se existe em português – que é “Por que você faz? Por amor à arte.” É o gratuito, o desinteressado; além disso, eu mudo, ou seja, deixo de ser o otimizador comum, atravesso por onde o mímico me diz e, além disso, avalio se o mímico tem sentido ou não. Quer dizer, o mímico me convida a ser seu juiz, seu juiz estético, me convida a relativizar meu interesse e a olhá-lo desde a perspectiva de membro de um público.

Outra coisa, a arte anuncia possíveis harmonias. A arte junta o cachorro e o gato. Mostra que podem se combinar o que parecia água e azeite. A arte combina e, obviamente, ela também – isto é mais tradicional – propõe modelos. Muitos de nós nos formamos através de identificações muito intensas com personagens de literatura. Ou seja, sem os irmãos Karamazov, possivelmente quem lhes fala não seria como é. São pedacinhos que vão ajudando a construir a pessoa, obviamente inspirados pela arte. De certa forma, resolver um problema aqui, com arte, pode levar outros a também resolverem outro problema com arte.

Vou lhes contar uma história do tempo em que eu era prefeito. Uma menina, ao completar três anos, pediu à sua mãe para me visitar, porque queria conhecer-me. A secretária organizou tudo, a mãe entrou com a menina e começamos a conversar. A menina gostava de mim, já me tinha visto pela televisão defendendo crianças queimadas por pólvora e tinha achado interessante. Estávamos já terminando a reunião quando a mãe, espontaneamente, contou-me o seguinte, com toda a naturalidade, como se o fizesse com bastante freqüência: “Quando eu vou bater nela, ela pega o telefone. Ela ainda não sabe discar, mas pega o telefone e me diz que está ligando para o senhor.” Imaginem uma menina de três anos que pensa que o prefeito pode protegê-la da violência e do castigo físico de sua mãe.

Esse fato, além de outro parecido, fizeram com que me decidisse a trabalhar sobre a violência intrafamiliar. O que fizemos? Em dois domingos de maio de 1996, fizemos uma vacinação contra a violência. Não mais a repetimos porque foi pesado demais. Nos dois domingos, foram recebidas 45.000 pessoas por uma equipe de mais de 100 psicólogos e psiquiatras que se tinham preparado e produzido um protocolo de atendimento. Havia um cubículo onde entrava uma pessoa por vez e o psicólogo ou o psiquiatra perguntava: “Quem foi que lhe agrediu mais na vida?” e a pessoa contava.

Em seguida, o profissional oferecia um balão e dizia: “Pinte o rosto de seu agressor neste balão.” Com um pincel atômico, a criança ou o adulto pintava o rosto do agressor e colocava-se este balão, como cabeça, sobre um corpo andrógino, vestido e sentado. Após, o psiquiatra ou o psicólogo dizia: “Agora, diga-lhe ou faça-lhe o que você quiser.” Em mais da metade dos casos, as pessoas estouravam a cabeça que tinham acabado de pintar. Na primeira vez que isto aconteceu, por parte de uma criança, eu tentei impedi-la. A psiquiatra segurou minha mão e me disse ao ouvido: “Há vezes em que não podemos ficar no meio, temos que nos colocar ao lado da criança.”

Esta era uma criança que acabara de contar que seu pai a agredia e, como reação, ela estava estourando o balão com a figura da cabeça de seu pai. No final, a psiquiatra procurava desculpabilizar a criança e a convidava a ter um desejo construtivo e positivo. Este desejo era escrito e colocado em uma árvore de desejos que se ia enchendo gradativamente. Em seguida, mostrava-lhe uma rede, dizendo: “Você é um nozinho aqui. Quanto mais amigos você tiver, quanto mais contatos você tiver com outros nós, menores vão ser os riscos de que isto se repita com você, menores os riscos de que a violência o machuque, e, se você for machucado, terá em quem se apoiar.” Uma mensagem sensata.

Na segunda jornada, 10% das pessoas marcaram hora porque a intensidade da reação tinha sido tão grande que se notava sua necessidade de atendimento profissional. Para as pessoas eram entregues folhetos que diziam.

“Se, algum dia, você vir ou conhecer um problema de violência intrafamiliar, este é o espaço e estes são os endereços onde é possível recorrer.”

Eu mesmo passei pela vacinação três vezes. Na primeira vez lembrei-me de um professor – eu usava calças curtas na época – que batia em mim com uma corrente. Outra vez, lembrei-me de uma discussão acalorada com minha mãe. E, na terceira vez, fui Buscar minha lembrança em um arquivo de uma cena de agressão quando eu era pequeno. Um galerista me levou para sua sala de exposições num domingo e me disse “quero lhe ensinar luta livre”. Não me despiu, mas esteve passando a mão em mim, com o pretexto de ensinar luta livre. Quando me lembrei do fato, percebi que a pessoa em referência já não poderia defender-se da acusação, nem dar explicações. Calei o seu nome. Não sei, mas acho que fiz bem, apesar de que possa haver quem ache o contrário.

Houve casos em que pessoas confessaram um homicídio, gritando: “Por isso, eu o matei!” No final das jornadas, os 100 psicólogos e psiquiatras faziam uma reunião relatando como se sentiam apavorados ao receberem o relato de memórias de cenas muito duras. Isto é o que foi denominado de vacina contra a violência.

Meu primeiro mandato na prefeitura de Bogotá não se completou, porque, faltando nove meses, eu me retirei para fazer campanha como candidato à Presidência. Tinha todo o direito legal e jurídico de fazê-lo, mas, quando fiz novamente a campanha para meu segundo mandato como prefeito, três anos mais tarde, havia gente que me interpelava com sinceridade: “Olhe, nós votamos no senhor, queríamos tê-lo como prefeito pelos três anos e o senhor não nos consultou.”

Tive que fazer uma jornada de perdão, que foi enorme. Foram oito horas num parque, escutando as pessoas dizendo se me perdoavam ou não, e a quem eu perguntava “Qual é o maior perdão que você já recebeu ou deu?” Com isto, fazíamos uma espécie de memória dos grandes perdões. Por exemplo, um senhor em cadeira de rodas contou que seu maior perdão tinha sido dele em relação a seu pai, porque este, até os dez anos, batia-lhe sem saber que ele tinha um leve retardo mental.

Em outro momento, fizemos o lançamento de um festival enorme de rap. Ao final da roda de imprensa, um jornalista disse: “Prefeito, por que não canta alguma coisa em rap para o Conselho da Cidade?” Obviamente, levei uma hora e meia com extrema dificuldade para conseguir cantar três versinhos, mas nessa semana o Poder Executivo e o Legislativo dialogaram em rap. Para surpresa de todo o mundo, mas, em particular, para certo grau de desconcertoe de reconhecimento por parte dos jovens que gostam de rap. Foi acordado entre os vereadores “briguemos, mas briguemos em rap.”

Quando eu era Reitor da Universidade – isto foi antes da prefeitura – um senador mandou-me uma carta pedindo que admitisse, saltando o processo de admissão e fazendo uma trapaça, um aspirante à Faculdade de Medicina. É necessário dizer que o curso de Medicina é muito concorrido, pois há 3.000 candidatos para 150 vagas. O que eu respondi? Uma carta muito amável dizendo “Senador, alguém está usando seu papel timbrado pessoal.”

No dia 9 de março de 2001, celebramos a noite das mulheres, quando cerca de 700.000 mulheres saíram para a rua e 300.000 homens saíram também, o que correspondia a duas mulheres para cada homem. Eu gostaria de ter feito um toque de recolher para os homens, ou seja, ter proibido totalmente a saída dos homens. Obviamente, isto era inconstitucional. A solução foi permitir que os homens saíssem caso se auto-habilitassem com uma permissão. Mesmo isto era uma solução frágil, pois ninguém poderia ser detido se não tivesse a permissão. Mas esta primeira tentativa funcionou muito bem.

Penso que a arte é uma chave na luta contra a violência do atalho. Falemos agora da gnoma (*). Na gnoma, a sociedade inculca bem os fins, mas não inculca bem as restrições aos métodos. Entrevistei corruptos e ladrões, criminosos relativamente pequenos, os que roubavam com faca, e fiquei muitochocado porque, quando eu lhes perguntava sobre seu maior orgulho na vida, falavam de sua família, com os olhos brilhando. Minha impressão era de que eles amavam mais sua família do que eu a minha. O problema não são os fins, mas seus meios, seus métodos, os quais não poderiam ser generalizados, porque se todo o mundo fizesse o mesmo a sociedade ruiria.

(*) Gnoma – sentença moral. (Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa)

No atalho, o que importa é o resultado rápido, pois as conseqüências mais remotas não são bem estimadas, ou seja, o bem futuro, ou não entra no cálculo, ou entra no cálculo com desconto. Quando eu estiver com 70 ou 80 anos eu vou apresentar provavelmente problemas de saúde relacionados à maneira como comi agora, aos 50. Mas, como os 70 parecem distantes, o atalho é o famoso “vamos viver e comer, que amanhã morreremos.” É uma espécie de supervalorização do presente. Em ambas as coisas, gnoma e atalho, os métodos aceitáveis se ampliam. Se a chave é o resultado a curto prazo, há o risco de desregulamentação.

A arte oferece antídotos para isso e posso me encaminhar para o término. Às vezes, as pessoas são violentas instrumentalmente, porque é o meio de se conseguir algo. Às vezes, as pessoas são violentas expressivamente, porque é o meio de dizer algo, de fazer sentir algo. Sobretudo se estivermos no segundo caso, a arte é uma boa alternativa. Se os jovens têm mais recursos expressivos, é provável que sejam menos violentos, que tenham outra maneira de expressar seus sentimentos e, nesse sentido, é possível aceitar que a arte é contrária à gnoma.

O resumo dos resultados é claro. Talvez não tenha salientado o suficiente o fato de que se planeja uma colaboração ativa entre o setor público e o privado. Não só se fazem medições, houve uma melhoria acentuada no serviço ao cidadão. Tenho uma última intuição, simplificando. Brasil e Colômbia, mais Colômbia que Brasil, têm sofrido muito com a violência nas últimas décadas, e a intuição básica é que se a cidade oferece mais possibilidades de arte e de expressão, isso pode ajudar a reduzir a violência.

Há uma obra que é uma comemoração dos Quinhentos Anos. É de Nijoles Ibicas, minha mãe, uma obra cuja intenção inicial era dizer “o barro está oprimido, preso, entre ferro, entre duas pranchas de ferro que o estão prensando”, mas a ironia da vida, a ironia da técnica quis que a obra acabasse dizendo exatamente o contrário – “a enorme solidez e a leveza do barro, a enorme força do barro.” A cultura é assim – parece frágil perante a tecnologia, parece frágil perante a economia, mas só parece. Muito obrigado.


Antanas Mockus*
Filósofo, Doutor Honoris Causa pela Universidade de Paris.
Colombiano de origem lituana, foi prefeito da cidade de Bogotá por duas vezes.

 

 

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